De ontem e de hoje – Os botões
por Licínia Quitério
A minha amiga refere-se amiúde ao seu tempo de África, o tempo em que foi imensamente feliz, quando ninguém pensava em ter de sair de lá, às pressas, rejeitada por um mundo, mal recebida por outro, uma folha da História a ser virada e ela feita protagonista com outras centenas de milhar. Hoje, muito tempo passado, descreve com serenidade, para quem merece ouvir, cenas do que viveu e outras que por certo imaginou. Diz das alegrias da infância em campo largo e aberto, nunca deixa de referir o esplendoroso pôr do sol dos trópicos, mas dá para perceber as saudades que lhe doem a ponto de lhe encurvarem as costas. A dado passo da conversa, eu percebo-lhe um travo amargo na voz, mas logo a seguir abre um sorriso exagerado, quem sabe a exorcizar alguma lembrança, num misto de tristeza e de raiva. Estou aqui para a ouvir, mas sei que não sou capaz de a perceber inteiramente. As nossas histórias pertencem a livros diferentes e não vale a pena ir mais fundo, nisso tacitamente concordamos, não vá uma pedra afiada golpear a nossa amizade.
Numa destas conversas, veio-me à memória uma cena de família, embora já um tanto esbatida pela usura dos muitos anos, com os contornos mal definidos, sem poder afirmar ao certo quem disse exactamente o quê. Importa mesmo é o que para mim perdurou. E foi assim, na tarde quente com salpicos de maré alta, nós ambas a embalarmos passados, que sem mais delongas lhe comecei a contar:
“Sabes que nunca estive em África, digo abaixo do Equador, e mesmo isso em curtas viagens que me deixaram vontade de um dia conhecer mais desse território, cuja história se cola à nossa, a antiga e a recente. Não aconteceu, mas de certa maneira o meu interesse pelas planuras vermelhas e quentes, pelos horizontes onde o olhar se perde, fez aprofundar o meu conhecimento sobre terras que não pisei.
O que quero contar-te é sobre algo que me ficou para sempre ligado ao conceito de África. Foi, nem mais nem menos, o casaco branco, de um tecido macio, que a minha tia vestia quando se foi despedir lá a casa porque ia viver uns tempos em África. O casaco era longo e apertava na frente com dois botões que me pareceram enormes, lindos, com uma cercadura preta e um centro em relevo lavrado com desenhos miúdos a preto e branco. Não voltei a ver botões iguais àqueles e confesso que ainda hoje os procuro quando entro numa retrosaria. A minha tia era uma mulher muito bonita, mais ainda do que o casaco branco, mas ao fim destes anos do seu desaparecimento, mais do que dos seus olhos verdes, é dos botões que me lembro, como nunca vi outros iguais. Sabes, posso até sentir na pele o toque do tecido branco com que a minha tia me abraçou numa despedida emocionada que fez brilhar mais os seus magníficos olhos verdes. Era isto que tinha para te contar sobre a África da ficção que construí.”
Era isto que hoje decidi contar-vos.
Licínia Quitério
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